O segredo industrial, a propriedade intelectual e a segurança de voo

Propriedade intelectual

No caso Honeywell Int’l, Inc. v. W. Support Group[1], o Tribunal Distrital dos Estados Unidos para o Arizona foi encarregado de determinar se um manual tem direito à proteção de direitos autorais. A requerente, Honeywell International, Inc., fabrica e vende vários produtos usados na indústria aeroespacial. Também cria e, em seguida, licencia manuais de reparo e manutenção para as unidades de energia auxiliares que vende. O réu, Western Support Group, obtém e, como seu negócio principal, distribui para as bases de revisão manuais de aeronaves mediante o pagamento de uma taxa de serviço. E no caso, sucintamente, o Tribunal considerou que “os manuais de manutenção de aeronaves podem ter originalidade suficiente para permitir a proteção de direitos autorais…”.

Assim como a requerente acima mencionada, existem outros fabricantes que também desenvolvem e distribuem manuais de manutenção para cada um de seus modelos de aeronave. Essas empresas mantém uma grande equipe de escritores e outros profissionais para produzir os manuais. Os custos de pesquisa, redação e produção dos manuais – tanto em versão impressa quanto em CD-ROM e outras mídias – são significativos. As empresas registram, portanto, seus direitos autorais nos manuais, pelos quais cobram um fee [periódico ou anual]. Nada mais justo.

Pois bem, para os fins de manutenção, manutenção preventiva ou alterações, o parágrafo 21.50(b) do RBAC 21[2] estabelece requisitos para que o detentor do projeto de tipo ou fabricante de um produto aeronáutico disponibilize instruções de aeronavegabilidade continuada – ICA[3]. No entanto, e uma vez protegidas por direitos autorais, as referidas publicações técnicas devem ter observadas suas reprodução e comercialização, da forma como definido pelo fabricante[4].

Trata-se de direito tão relevante que o Brasil o consagra em sede constitucional, ao estabelecer no art 5° inc. XXVII da CF/88 que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras”, assegurando, ainda, no inc. XXIX a proteção aos inventos industriais e às criações industriais, haja vista que o avanço técnico-científico não existe sem a proteção integral da propriedade intelectual, nos seus mais diversos desdobramentos.

Estariam, portanto, a Segurança de Voo, Direitos de Propriedade Intelectual e Segredos Industriais em conflito?

O mercado aeronáutico americano já discute há anos essa tríade.

Com relação aos segredos industriais, exemplificamos disputa que surgiu da apropriação indébita de informações técnicas necessárias para garantir a conformidade ao FAA para o reparo e manutenção de motores de helicópteros desenvolvidos pela Rolls-Royce. Como a predecessora da Rolls-Royce, Allison Engine Co., não havia exercido um controle rígido sobre essas informações técnicas, as empresas terceirizadas de revisão viram a oportunidade de entrar e competir por esses serviços. Uma dessas oficinas de reparo e revisão, a AvidAir, garantiu algumas dessas informações técnicas sem o consentimento da Rolls-Royce na década de 1990. Como Allison e, posteriormente, a Rolls-Royce procuraram melhorar os controles dessas informações, eles descobriram que a AvidAir havia protegido indevidamente essas informações técnicas de oficinas de manutenção autorizadas e as estava usando para reparar e revisar esses motores. O Tribunal americano reiterou três princípios fundamentais dos segredos industriais: (1) ao contrário da lei de patentes, os segredos industriais derivam seu valor principal não de sua novidade, mas sim do fato que são secretos e requerem esforço e recursos para serem compilados; (2) que a ética comercial é a base fundamental dos segredos industriais; e (3) o fato de que um segredo industrial pode sofrer engenharia reversa não o torna desprotegido.

Depois que um júri concedeu $ 350.000 à Rolls-Royce pela apropriação indébita das informações técnicas, a AvidAir apelou e argumentou que as informações não eram dignas de proteção de segredo industrial. A AvidAir argumentou que as informações técnicas em questão não forneciam valor econômico independente porque havia apenas uma quantidade trivial de informações que não era facilmente apurável a partir de materiais disponíveis publicamente anteriores e que essas melhorias não ofereciam avanços de engenharia. A corte americana rejeitou essa alegação, argumentando que a “existência de um segredo industrial é determinada pelo valor de um segredo, não pelo mérito de seus aprimoramentos técnicos. Ao contrário da lei de patentes, que prevê proteção em novidades e não-óbvias, as leis de segredos industriais destinam-se a reger a ética comercial. ”

Já no Brasil, o parágrafo 145.109 (d) do RBAC 145 estabelece que cada OM deve possuir, quando aplicável, a assinatura ou autorização de uso por parte do proprietário da documentação técnica (proprietário do direito autoral ou detentor do direito de comercialização). Já a seção 145.201 do RBAC 145 estabelece que a OM somente pode executar manutenção ou alteração em artigo para o qual é certificada se tiver à sua disposição os dados técnicos aplicáveis.

Dessa forma, preceitua a IS n. 145.109-001 da ANAC, no que diz respeito à obtenção, atualização e controle de publicações técnicas (“PT”):

“5.4.2 A atualização da PT será verificada com base no último índice de publicações (ou equivalente) emitido pelos detentores do projeto de tipo ou fabricante do produto aeronáutico, que é o documento aceito pela ANAC para tal verificação. Considerando que uma atualização das PTs pode envolver atualização de sistemas e novos treinamentos, ferramentas, métodos e práticas de manutenção, os quais requerem tempo de adequação pela empresa, é aceitável que uma atualização não seja imediatamente aplicada em serviços que já estavam em andamento, quando da publicação, desde que atendidas as condições abaixo: a) Não se trate de publicações técnicas mandatórias pela autoridade aeronáutica. Exemplos: Diretrizes de Aeronavegabilidade; seção de limitação de aeronavegabilidade do manual de manutenção; instruções aprovadas pela autoridade aeronáutica; b) O serviço seja concluído no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da data de publicação da PT. 

5.4.3 O operador, ou OM, que emprega em sua organização métodos remotos de acesso às PT (por exemplo: uma biblioteca eletrônica, ou um acesso centralizado às PT atualizadas via terminais remotos por rede/intranet) necessita desenvolver métodos que garantam a forma segura, acessível e atualizada de disponibilizá-las a quem é requerido acessá-las; 

5.4.4 Para a manutenção de aeronaves, um proprietário/operador de uma aeronave pode ceder as PT das quais seja proprietário às OM para que seja realizada a manutenção, manutenção preventiva e alterações em sua aeronave. A seção 145.109(a) do RBAC 145 estabelece que é necessário haver uma autorização ou contrato de uso exclusivo entre a OM e o proprietário/operador da aeronave. A OM só pode manter os produtos de quem cedeu as publicações técnicas, ou seja, não pode utilizar as publicações técnicas para manter aeronaves de terceiros; NOTA 1 – A OM deve garantir que, ao utilizar as publicações técnicas do operador/proprietário, do artigo para o qual irá executar manutenção, manutenção preventiva ou alteração, elas estejam disponíveis no momento em que o serviço for executado e na última revisão disponibilizada pelo detentor do projeto de tipo ou fabricante (considerando o prazo definido no parágrafo 5.4.2 desta IS). Um contrato entre a OM e o operador para o fornecimento de publicações técnicas é aceitável como forma de garantia de disponibilidade. 

5.4.5 A OM que executa manutenção, manutenção preventiva ou alterações seja em aeronaves, motores, hélices, e/ou equipamentos (componentes) necessita requerer acesso às publicações técnicas relacionadas a cada artigo listado em suas Especificações Operativas – EO ou Lista de Capacidade – LC, respeitando os serviços autorizados e limitações listadas nesses documentos (geralmente, manuais de reparo – Shop & Overhaul Manual – OHM e/ou de manutenção de componentes – Component Maintenance Manual – CMM); 

5.4.6 A OM dedicada a serviços especializados necessita possuir ou ter acesso às normas atualizadas (especificações) relativas à natureza dos serviços certificados pela ANAC. Os parágrafos 145.61-I(c)(1) e (2) do RBAC 145 estabelecem tais requisitos. 

5.4.7 Adicionalmente, e dependendo do serviço sendo contratado a uma OM certificada em serviços especializados, esta pode precisar de acesso às publicações técnicas da aeronave, motor, hélice ou componente no qual será realizado o serviço. Neste caso, a empresa/OM contratante pode ceder as PT à OM para que seja realizada o serviço especializado. Da mesma forma, não é permitida a utilização dessas publicações técnicas em artigos de terceiros (vide seção 5.5 desta IS); 

5.4.8 A ANAC recomenda que, antes de se oferecer para realizar a manutenção, manutenção preventiva e alterações em um artigo, a OM verifique se estão disponíveis as ICAs/DTs atualizadas. Questões puramente comerciais entre a OM e o detentor do projeto de tipo ou fabricante não são objeto de atuação da ANAC. A ANAC não intercede junto às demais AACs na tentativa de obter, para uma OM interessada, acesso às ICAs/DTs que um detentor do projeto de tipo, fabricante ou seu autorizado não tenha disponibilizado. 

Fundamental perceber que o acesso às publicações técnicas apenas se dá mediante aquisição de tais produtos, como deixa claro a norma técnica aplicável:

5.2.2 No caso de motores, hélices e equipamentos (componentes), o proprietário das ICA é a OM que adquire a publicação via assinatura. Quem produz as ICA referencia direitos proprietários dos dados produzidos, marca registrada, etc.;

Não há, portanto, e nem poderia haver, o direito subjetivo de recebimento de tais publicações a título gratuito. O que se tem é um produto de extrema complexidade, cuja circulação é limitada e somente se efetiva mediante assinatura – como deixa claro a norma transcrita. Com isso, afasta-se qualquer dúvida possível quanto à natureza das ICA.

Destacamos que o debate entre as bases de revisão e os fabricantes é contínuo. As empresas, que fabricam as fuselagens, motores ou aviônicos, investem grandes quantias de capital nesses produtos de aviação. Em apoio ao desenvolvimento dessa tecnologia, rotulam muitos dos documentos associados à sua manutenção como “Proprietary”.

Dada a maior capacidade de engenharia reversa, tecnologia avançada, como precisão das medições a laser, as bases de revisão e organizações de PMA podem discernir legitimamente muitas das dimensões necessárias para replicar os elementos da tecnologia do OEM. Este é o problema.

Já o FAA (Federal Aviation Administration/USA), se manifestou em algumas situações requeridas pelos interessados no que diz respeito à interpretação da 14 CFR 21.50(b) (Code of Federal Regulations).

Em 14 de Abril, 2003 o FAA emitiu uma carta opinião, ao Sr David Rain, Alcor Engine Company Inc., assinada por Richard McCurdy que contém 4 condições para a ICA ser disponibilizada aos solicitantes autorizados: “1) A solicitação do último certificado de tipo relacionado (original, alterado ou suplementar) foi feita após 28/01/81; 2) A última base de certificação relacionada inclui 21. 50 conforme emenda 09/11/80 ou posterior (e 2x.1529 ou 3x.4 conforme aplicável), ou seja, o titular do certificado foi obrigado a desenvolver (fornecer) ICA como parte do processo de certificação ; 3) O solicitante (estação de reparo) do ICA está atualmente classificado para o produto / peça e é exigido pelo Capítulo 1 de 14 CFR para cumprir o ICA para o produto / peça; 4) Se os dados do ICA solicitados forem um manual de manutenção de componentes (CMM) ou informações de reparo específicas, o CMM ou as informações de reparo são referenciados no ICA de nível superior (avião ou motor ICA) como a fonte apropriada de informações para ações continuadas de aerodinâmica.

Mais adiante, em 9 de Agosto, 2012, o FAA emitiu uma carta de interpretação jurídica à Aeronautical Repair Station Association, com algumas ponderações, cujo extrato relevante para este artigo em reflexão segue:

“(…) Por fim, o seu terceiro postulado é muito amplo para uma simples resposta sim ou não. Isso levanta a questão de se todas as “bases de revisão devidamente classificadas” estão incluídas na classe de “qualquer outra pessoa exigida por este capítulo para cumprir qualquer uma dessas instruções”. Somente pessoas nessa classe teriam o direito de receber ICA de um detentor de aprovação de projeto (DAH) de acordo com § 21.50 (b). Na medida em que seu postulado significa amplamente que todas as “bases de revisão devidamente classificadas”, sem restrição, têm direito a receber ICA sob § 21.50 (b), nossa resposta é não. Se isso significar uma base de revisão devidamente classificada com a necessidade de cumprir com a Seção de Limitação de Aeronavegabilidade (ALS), ou seja, uma base de revisão na posse de um componente a ser trabalhado, ou uma base de revisão  com alguns outros indícios da necessidade de (exigido para cumprir com o ALS para o componente), ou seja, um contrato, uma ordem de serviço, etc, que demonstrasse tal necessidade, então nossa resposta é sim. Não oferecemos nenhuma opinião sobre quais indícios mínimos de necessidade desencadeariam o requisito de disponibilização. Talvez o FAA e a indústria poderiam trabalhar em conjunto para estabelecer um critério de limite razoável a ser publicado em uma Advisory Circular ou em outro material de orientação.

E em conclusão,

O FAA não regulamenta a competição entre as bases de revisão, mas sim a segurança. A intenção do FAA para o 21.50 (b) era facilitar a capacidade do proprietário / operador de gerenciar sua própria manutenção e garantir que aqueles necessários para realizar ações de aeronavegabilidade continuada teriam acesso às instruções aeronáuticas, no interesse da segurança. Não foi pretendido que qualquer pessoa que deseje entrar no ramo de reparos / revisão receba manuais de reparos.

E segurança de voo é primordial na tríade em discussão. É necessário sempre o apoio da engenharia do fabricante, e que o acesso às publicações técnicas seja disponibilizado aos centros de serviços designados pelos próprios fabricantes, de forma que sua utilização não coloque em risco os usuários finais. 

[1] Honeywell Int’l, Inc. v. W. Support Group, Inc., CV 12-00645-PHX-JAT, 2013 WL 1367355 (D. Ariz. Apr. 4, 2013). [2] Regulamentos Brasileiros da Aviação Civil.[3] Documento emitido pelo detentor do projeto de tipo ou o fabricante do produto aeronáutico, que fornece métodos, técnicas e práticas aceitáveis para a execução de manutenção, manutenção preventiva e alterações.[4] IS n. 145.109-001, Revisão C – ANAC

Ivan Dilly, Chief Legal Officer & Founder

www.dilly.adv.br

 

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Ivan Dilly Chief Legal Officer & Founder Ivan Dilly | Advocacia, boutique jurídica para as indústrias da aviação, aeroespacial e assuntos governamentais e defesa. Assumiu por mais de uma década a gestão jurídica/compliance na América do Sul para o Grupo Rolls-Royce. Possui mestrado (LL.M., Business Law) pela University of California, Berkeley – School of Law/USA, MBA pela FIA – Business School SP, e especializações pela Stanford University/USA, Harvard Law School/USA, Academia de Direito Internacional de Haia/Holanda, PUC-SP/Brasil e Universidade Mackenzie/Brasil. Foi reconhecido pela Legal 500’s GC Powerlist for Brazil como um dos advogados mais influentes e inovadores (2016), e pela Legal 500’s GC Powerlist Brazil: Teams como um dos melhores times jurídicos no Brasil (2017 e 2019). É nomeado membro exclusivo do IR Global para o Direito Aeronáutico no Brasil.